A recente reunião da Comissão Europeia, que estabeleceu o plano de recuperação pelo qual os vários países membros da UE terão de enfrentar a crise gerada pela pandemia de Covid19, expôs toda a fragilidade da estrutura política da União Europeia. Os atuais dirigentes não tiveram interesse nem ousadia em propor novos percursos. Eles não deram a menor resposta às necessidades das populações que pagaram e continuam a pagar um alto preço. Já houve dezenas de milhares de mortes, milhões de empregos perdidos, regiões inteiras em perigo, milhares de migrantes, candidatos a refugiados, ilegais que foram abandonados ou que estão batendo desesperadamente nas portas da “opulenta” União Europeia.
A pandemia foi um golpe para as populações europeias, especialmente as mais pobres. Se as enormes dificuldades surgidas foram de alguma forma superadas, é graças à resposta dos trabalhadores da saúde e à solidariedade dos trabalhadores e das massas. Muitas greves foram organizadas para impor medidas de segurança aos empregadores de empresas não essenciais, que afirmavam continuar a produção a todo custo; de trabalhadores que converteram as ferramentas de suas empresas para produzir respiradores ou máscaras. Nos bairros da classe trabalhadora das grandes cidades, dezenas de milhares de pessoas se organizaram para distribuir alimentos e remédios aos mais pobres. Esta tremenda demonstração de solidariedade continuará nas próximas lutas para sair da situação atual.
Os médicos e trabalhadores da saúde foram os que mais pagaram pelas consequências de mais de 30 anos de destruição dos sistemas de saúde públicos estabelecidos nos principais países europeus no final da guerra em 1945. Este dinheiro é retirado dos hospitais públicos, das campanhas de prevenção, da medicina comunitária, dos serviços de atendimento a idosos; e foi para a iniciativa privada. A saúde pública existe para garantir a saúde da população, a medicina privada precisa da doença, é isso que a sustenta.
O enorme mortalidade nas casas de repouso dos idosos é a demonstração brutal dessa negligência criminosa. Depoimentos de trabalhadores desses centros destacaram as condições desumanas, falta de higiene, má nutrição e maus-tratos sofridos pelos residentes. É essa falta de cuidados adequados que permitiu que o vírus se propagasse rapidamente. Durante os primeiros meses da pandemia, foi neste setor da sociedade que a mortalidade foi mais elevada. Devemos denunciar os responsáveis e julgá-los por todos esses crimes.
A pandemia foi chamada de “a pandemia dos pobres” porque as maiores taxas de contágio foram alcançadas nos bairros populares das grandes cidades. As condições de vida social, o trabalho precário, o desemprego, a moradia apertada e a má nutrição são as causas determinantes.
O capitalismo expôs não apenas sua incapacidade de unificar a Europa, mas também suas dificuldades em reduzir todas as diferenças. Por enquanto, o que “une” a burguesia é apenas a necessidade de conter a catástrofe econômica e social. Se a Comissão pretende “apoiar” os países mais pobres da UE, é para que não fiquem sob a pressão da luta social. Apesar de ser uma grande potência económica, a UE não conseguiu transformar o Banco Central Europeu num verdadeiro Banco central que como a Reserva Federal ou o Banco da Inglaterra intervém injetando dinheiro diretamente aos estados para reativar a economia, para construir um sistema sólido de bem-estar a nível europeu, com um sistema universal de saúde pública, garantindo uma vida digna às massas.
O dinheiro que as classes dominantes reservaram para cada país é claramente insuficiente. Existem tensões e rupturas importantes entre elas. As previsões de uma queda de 10-12% do PIB já foram largamente ultrapassadas, enquanto o montante concedido pela Comissão mal chega a 3-5% do PIB em alguns países. A maior parte deste “auxílio” vai acabar no bolso das grandes empresas, ainda que seja apresentado como “financiamento concedido aos Estados”. Na Bélgica, por exemplo, o Estado vai conceder 350 milhões de euros para o resgate da Brussels Air Lines, que na verdade é uma subsidiária da Lufthansa e que está demitindo centenas de trabalhadores. Isso é o que eles chamam de “respeito às cláusulas sociais”!
Hungria e Polônia, que não respeitam o Estado de Direito e são as mais receptivas às diretivas dos EUA e da OTAN, também receberão ajuda. Esses governos fecham suas fronteiras, suprimem protestos sociais e políticos, processam partidos comunistas e socialistas e prendem líderes sindicais e políticos. Estes direitos democráticos também não são respeitados pelos Estados mais importantes da UE, como a França: o Presidente Macron suprimiu violentamente o movimento dos coletes amarelos e os movimentos sindicais e populares contra a reforma das pensões. Todos esses governos estão tentando evitar protestos sociais, bem como a entrada de migrantes no “território europeu”.
O capitalismo europeu não experimentou nenhum crescimento desde 1989. Os países do Leste, a maioria dos quais fizeram parte do Pacto de Varsóvia após a Segunda Guerra Mundial e que se tornaram a linha de frente da OTAN em seu confronto com a Rússia, na realidade representam o fracasso da política capitalista “europeia”. Esses eram Estados operários, fortemente condicionados pela política da burocracia stalinista da URSS do pós-guerra. Mas o capitalismo não foi capaz de trazer a eles a “dignidade” anunciada na época da queda do Muro de Berlim (1989). Esses Estados estão subordinados às grandes empresas dos países europeus, especialmente da Alemanha, e aos objetivos militares dos Estados Unidos e da OTAN. Seus governos são constituídos pelas velhas camadas burocráticas stalinistas que contribuíram para o desmantelamento de sua economia estatal e que agora vivem da exploração de sua condição subordinada de multinacionais e da OTAN.
O exemplo mais óbvio deste processo é a ex-RDA (República Democrática Alemã): a RFA (Alemanha Ocidental) adquiriu ali a um custo muito baixo as melhores empresas e as capacidades importantes dos trabalhadores e do resto a sociedade da ex-Alemanha Oriental não foi integrada e vive em condições inferiores.
Hungria, Polônia e outros países são as sedes de empresas europeias que podem empregar mão de obra a preços baixos, fora do controle sindical e pagando impostos ridículos. Os governos desses países ofereceram seus territórios para serem transformados em campos de batalha contra a Rússia. Foi o que aconteceu também com outros países da UE, como Itália, Grécia, Espanha e outros.
O capitalismo europeu não teve nenhum crescimento desde 1989, continuou a se concentrar, enquanto todo o território da Europa Oriental não foi incorporado a um processo de desenvolvimento, crescimento das forças produtivas e mercado, cultura, ciência. A queda dos Estados operários (países socialistas) foi, de fato, um revés para os povos desses países e do resto da Europa. O capitalismo exacerba a competição interna, Alemanha com a França, contra a Grã-Bretanha e Estados Unidos.
Os Fundos de Reconstrução não estão incluídos no Balanço Geral da União Europeia que aumenta a contribuição paga por cada país, ao mesmo tempo em que, a parte da transferência a “fundo perdido” é menor do que a contribuição que cada um terá que fazer a partir de 2021. O restante do financiamento é com empréstimos, com taxas reduzidas, mas são sempre créditos que só vão aumentar a dívida pública dos Estados. Na verdade, será como durante a crise de 2008-2009: um resgate oculto dos grandes Bancos privados.
O Banco Central Europeu (BCE) concede empréstimos a Bancos com juros de 0%, estes transmitindo-os aos diversos Estados com juros de 2 a 5% (dependendo do grau de “credibilidade” dos países). Itália, Grécia e Espanha estão sujeitos a pagamentos de juros mais elevados. Esses Estados são obrigados a utilizá-los para a compra de bens e serviços, para o pagamento de dívidas; enquanto que a maior parte do que seria destinado à pesquisa e ao desenvolvimento é adquirida pelas grandes multinacionais e grandes empresas dos principais países. Para apoiar a recuperação, a Alemanha e a França estão investindo 14% do PIB, enquanto a Espanha e a Itália estão investindo apenas 3 a 5%. Isso determinará diferentes ritmos. A Europa está cada vez mais dominada pela grande burguesia e pelas finanças alemãs e francesas.
A Finlândia, Bélgica, Holanda e Áustria deverão liderar o Plano de Recuperação Europeu, mantendo seus paraísos fiscais e privatizando ainda mais a saúde pública em benefício de companhias de seguros privadas e fundos de investimentos. Esta é uma das exigências de “reforma” dos países que recebem ajuda. Todas essas medidas impedirão o desenvolvimento das economias, aumentarão as desigualdades sociais, levarão à privatização total dos serviços públicos e mergulharão os setores populares ainda mais na pobreza. Se um país não respeitar as condições que lhe são impostas, a União Europeia pode bloquear a ajuda.
O Acordo feito é transitório
Essas serão as “condições”: redução total dos direitos trabalhistas, cortes nos gastos do Estado, eliminando ainda mais as regras que “impedem” a propriedade privada de agir livremente. Pretendem amordaçar o movimento operário ao mesmo tempo que se dá plena liberdade às multinacionais e às empresas, à qual devem prestar toda a ajuda possível, chegando mesmo a nacionalizar as empresas em crise. É concedida total liberdade às multinacionais e às grandes empresas nacionais para utilizarem os auxílios recebidos, incluindo o direito de recorrer ao controlo estatal caso se declarem em crise (controlo estatal temporário, até voltar aos trilhos).
Nas negociações em curso, todos os “tabus” do período de austeridade foram abandonados: disseram “não havia dinheiro para fazer investimentos” e agora há; disseram que “a dívida soberana não pode ultrapassar 30% do PIB” e agora pode fazê-lo sem limites; o auxílio estatal não era permitido e agora é.
Estas medidas são intervenções ordenadas com urgência, que em nada alteram a natureza do capitalismo europeu ou a preponderância de determinados setores, como a grande indústria eletrônica e militar, o setor automobilístico, a aeronáutica, a indústria farmacêutica e química, produção de energia e serviços. O processo de concentração e competição irá agravar ainda mais e impor um novo equilíbrio de poder dentro da UE. Com este Plano de Recuperação, a Comissão Europeia está a poupar algum tempo e a tentar reduzir os efeitos da crise nos sectores mais frágeis.
As massas devem defender seus direitos e conquistas e fazer um Plano de Desenvolvimento Econômico de acordo com suas necessidades
As massas também podem ganhar tempo e lucrar com as lutas internas da classe dominante e a competição da UE com a China, a Rússia, os outros países do BRICS e os Estados Unidos. Os povos da Europa lutarão com todas as suas forças para não suportar o peso desta chamada crise do covid19 e para que o dinheiro para o plano de recuperação volte para eles.
Na Europa ainda existe na memória popular a experiência histórica da União Soviética, dos grandes partidos comunistas e dos sindicatos. As massas sempre têm em mente as experiências mais recentes da esquerda. Embora não tenham tido sucesso em todos os lugares, eles tiveram sucesso em influenciar governos, como na Espanha e em Portugal. Há também a experiência de Syrisa na Grécia ou Corbyn e da esquerda trabalhista na Grã-Bretanha, a das grandes lutas na França, coletes amarelos e sindicatos unidos que conseguiram impedir a reforma previdenciária.
Devemos defender todos os direitos conquistados: ninguém deve ser despejado de sua casa porque não pode pagar o aluguel. Ninguém pode perder o emprego porque a empresa está em crise. Precisamos de um salário mínimo universal, garantido pelo Estado e permitindo que todos os trabalhadores vivam com dignidade, ninguém deve ficar sem renda.
O sistema capitalista tem interesse em reduzir o número de trabalhadores. Esse processo já existia antes da pandemia, vai se aprofundar ainda mais. Uma das reformas propostas pela UE é o desenvolvimento digital (5G, Banda Larga, Inteligência Digital, etc.), o que levará inevitavelmente a uma redução da força de trabalho, ou a formas individuais de organização da produção. Isso significará: uma classe média menor e mais escolarizada, que atuará com maiores meios tecnológicos e outra parte dos trabalhadores que terá menor escolaridade e atuará no setor de comércio, logística e serviços.
O capitalismo não pode garantir pleno emprego e nem lhe interessa. O movimento sindical e trabalhista deve exigir a intervenção do Estado para forçar os empregadores a manter o pleno emprego; deve exigir investimentos na construção massiva de moradias, especialmente em regiões que sofrem com terremotos e inundações, investir na proteção do meio ambiente natural e histórico, investir na cultura, na formação, na educação.
Um plano comum a ser implementado imediatamente deve incluir a reparação do imenso golpe que os idosos sofreram durante esta pandemia: é necessário travar, em toda a UE, as reformas das pensões que tendem a aumentar a idade da aposentadoria. Deve haver uma pensão universal aos 60 anos para os trabalhadores que realizam trabalhos perigosos e insalubres. O valor da pensão deve se manter nos 80% do salário e ser indexado de acordo com o aumento do custo de vida.
Devemos organizar e multiplicar comitês de apoio aos idosos, com a participação de trabalhadores da saúde e sindicatos, e exigir investigações punido os responsáveis por excesso de mortalidade por covid19 de pessoas idosas. Denunciar os interesses privados que prevalecem nas estruturas de saúde e lares de idosos.
É importante generalizar formas de cogestão, ou de controle operário, como fizeram os metalúrgicos na Alemanha, para planejar reconversões industriais com dinheiro do Estado e sob controle operário. O movimento operário deve impor suas condições, controlar a qualidade da produção e seu caráter socialmente útil.
O Estado deve assumir o controle das empresas em crise e os sindicatos devem impor a participação dos trabalhadores no planejamento e controle da produção. É preciso haver uma redução geral do tempo de trabalho e uma divisão do trabalho existente.
Os imigrantes devem ser integrados nestes planos, a fim de projetar planos de produção em consonância com seus países de origem, África ou Ásia, e superar as relações coloniais e imperialistas que impediram o desenvolvimento desses países e provocaram êxodo em massa de populações para a Europa. A União Europeia nunca será uma entidade democrática enquanto persistirem as relações econômicas coloniais e o domínio militar. Devemos acabar com todas as missões da OTAN na África, Ásia, América Latina.
Devemos estabelecer um sistema tributário único, que tribute seriamente grandes fortunas, ativos e depósitos financeiros. Expropriação dos paraísos fiscais, sem indenização. Os limites da atual “Europa Unida” eram evidentes na época do recente grande acordo do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu a favor da empresa Apple onde a multinacional cuja sede europeia está na Holanda – como muitas outras – beneficia-se do paraíso fiscal dos Países Baixos, apesar da Comissão Europeia ter ordenado a pagar impostos maiores.
A política das grandes empresas, sejam europeias, americanas ou britânicas, é criar “centros de coordenação” em países, como a Bélgica, por exemplo, onde pagam menos impostos e beneficiam-se de salários mais baixos. Esta decisão do Tribunal Europeu, que privou o Tesouro Comum de recursos significativos, foi bem acolhida pelos Países Baixos: que “belo espírito de comunidade”! Aconteceu o mesmo quando os governos alemão e francês se apoderaram das máscaras cirúrgicas destinadas à Itália e Portugal. Também nos lembramos da sobre-oferta de preços de algumas empresas que já haviam sido fixados antes da crise do vírus; ou outras que as vendiam nos Estados Unidos, desviando-as dos seus compradores legítimos.
Por uma Europa que combata o aquecimento global e promova o desarmamento
As burguesias estão pressionando para abrir toda a economia, porque baseiam seus ganhos na competição e no domínio do mercado. Mas os trabalhadores não podem depender do mercado, nem esperar que seu chefe ganhe uma posição dominante. Devem superar todos juntos as dificuldades derivadas da Pandemia que se confundem com as da crise capitalista anterior e com a provocada pela introdução da “inteligência artificial” na produção. Devemos garantir um emprego seguro e um salário digno para todos. Devemos controlar as empresas ajudadas pelos Estados, eliminar o desperdício e o clientelismo.
As empresas precisam ser reorganizadas para a proteção do meio ambiente. Devemos usar energias renováveis e eliminar o mercado de CO2. Uma redução significativa na sua produção será obtida com a cessação do uso do concreto nas cidades, bem como com uma reforma radical do comércio, de modo a evitar longas distâncias de transporte e promover a produção e distribuição local de consumo. A urbanização de cidades e regiões deve ser repensada, com a participação das populações.
A Europa que queremos deve estabelecer relações pacíficas entre todos os seus membros e abolir todas as suas antigas funções colonialistas e imperialistas. A indústria militar deve ser convertida em bens úteis à população e a OTAN deve ser desmantelada imediatamente. Quase 20% das verbas que os países receberão no âmbito do Plano de Recuperação serão destinadas às despesas militares necessárias para cumprir as condições impostas pelos Estados Unidos aos Estados participantes na criminosa Aliança Atlântica.
Não podemos justificar tais despesas! As armas não podem ser vendidas a países agressores, como a Arábia Saudita, que utiliza armas europeias para massacrar o povo iemenita, assim como o Egito.
A OTAN (e não apenas os Estados Unidos) manteve a organização da Operação Defender 2020, apesar da terrível situação causada pelo vírus Covid19. Devemos impor uma redução imediata nos orçamentos militares e assinar o Tratado de Proibição da movimentação das armas nucleares nos seus próprios países, Parar de criminalizar a Rússia, China, Cuba ou Venezuela.
Os partidos Comunista, Socialista, Trabalhista, Ecologista, todos os movimentos que surgiram de suas crises ou compromissos com o capitalismo devem agir como uma Frente única com os movimentos sindicais para impor um plano industrial e social que tire a Europa desta crise agravada pela Pandemia e, assim, avance para uma Europa socialista que é a única saída para aproveitar todas as capacidades econômicas, sociais, científicas e culturais e cooperar de forma justa com o resto do mundo.
Os Posadistas
15/09/2020
Créditos das fotos desta matéria durante a manifestação “A Saúde em luta” em Bruxelas (Bélgica): Jean Federic Hanssens