O circo dos “cadernos” abre a cortina da terrível invasão dos domicílios de Cristina Kirchner
As ameaças à integridade física e aos direitos político da ex-presidenta Cristina Kirchner passou dos limites: em risco os direitos humanos e a constituição argentina. A invasão domiciliar marca um poder judicial-midiático ameaçador sob a égide do FMI e dos EUA. Advogados constitucionais em luta!
Era de se prever que os “Cadernos” do motorista surgiam no cenário nacional, não para revelar verdades, mas para empaná-las com o mais absurdo dos shows midiáticos da invasão policial aos domicílios da senadora e ex-presidenta Cristina Kirchner. Algo que horroriza a quem tinha esperanças de que o Estado de direito ainda existia na Argentina, e pensava que a ditadura varrida, graças à década kirchnerista, “nunca mais” retornasse. Vive-se um cenário nefasto da ditadura do poder Judiciário-Midiático. Como já bem dito, “não há neo-liberalismo sem repressão!”. Aqui, plantaram-se as botas do FMI.
Após o show midiático das “fotocópias dos cadernos”, com sucessivas imagens de primeiro plano de prisões sem prova de funcionários ligados a obras públicas, sobretudo do governo anterior, desfilaram para depor frente ao Juiz Bonadio, desapercebidamente, empresários mencionados como participantes no esquema de cartéis e propinas. Entre esses se incluem acionistas como Calcaterra, o primo do presidente Macri, testa de ferro de construtoras, IECSA-Socma, da família Macri. Estranhamente, todos aqueles que admitem haver sofrido extorsão, ou recebido propina, declaram-se “arrependidos” e são liberados; sem que os tais dinheiros apareçam, quando ao início do governo de “Cambiemos” decretou-se o chamado “blanqueo” de capitas (anistia às fortunas em dólares não declarados). Através do único canal de TV opositor, o C5N, o advogado (Mariano Cuneo Libarona) defensor de um empresário que se diz inocente, revela pressões gravíssimas exercidas pelo Judiciário responsável pela causa dos “Cadernos”, contra os acusados deponentes, numa violação clara dos direitos civis, para que se revelem arrependidos, e que delatem ou inventem nomes, sem provas, que comprometam o governo kirchnerista, como condição para serem libertados. Com isso, há 30 arrependidos soltos.
Nesse contexto de aberrante transgressão ao direito penal e constitucional, que se tem vivido na Argentina, ocorre a perseguição política à ex-presidenta Cristina Fernandez de Kirchner, vítima de um bombardeio midiático para desconstruir a sua imagem. Algo idêntico à guerra sem limites da Globo contra Lula da Silva. Veja vídeo do jornalista FC Leite Filho sobre a similitude do esquema golpista. A busca e apreensão nos três domicílios, aprovada um dia antes no Senado, com consentimento da própria senadora junto ao bloco da Unidade Cidadã (indicando uma decisão tática para revelar publicamente o nível da perseguição) realizou-se fora das normas legais, das garantias constitucionais, da preservação da privacidade e dos bens do indivíduo, neste caso, senadora e duas vezes presidenta da República, ao ser eliminada, por ordem judicial, a presença do seu advogado defensor Carlos Beraldi. A operação, de 40 pessoas por 14 horas, à primeira residência no bairro Recoleta, contou com um exagerado desfile de 20 carros policiais cães farejadores de dólar, escâner e boroscópio. Um procedimento agressivo, que levou a ex-presidenta a decidir não voltar mais a viver nessa residência, suspeitosamente violada; assim informou o programa do jornalista Roberto Navarro, no El Destape. Tudo, foi acompanhado do show midiático tratando de intimidar também a massiva militância que circundou solidariamente o edifício com uma faixa gigantesca : “Força Cristina!”. Os advogados de defesa de Cristina estão promovendo um embate judicial, através do Colégio de Advogados, contra o abuso de autoridade do Juiz Bonadio onde se inclui a divulgação, através da mídia hegemônica, do seu pseudo-julgamento, prévio a um processamento normal judicial das buscas aos domicílios da ex-presidenta. O jornal Clarin, em sinal de cumplicidade, amanheceu hoje com a manchete: “Para o juiz houve uma quadrilha delitiva ‘comandada por Néstor, Cristina e De Vido’ ”. Contra esta falsa notícia e infração judicial estão apelando os advogados, pedindo julgamento político da atuação do juiz Bonadio, perante o Conselho da Magistratura e instâncias internacionais. Leia pronunciamento esclarecedor do advogado Carlos Beraldi.
“As pessoas não comem cadernos” (CFK)
Enfim, a cada dia evidencia-se que os “Cadernos” são uma invenção para, por um lado, encobrir o fracasso de Cambiemos e Macri diante do colapso econômico provocado pela entrega do país ao FMI; por outro, impedir o crescimento político de Cristina, a líder central da oposição a esse desmonte. Macri tem 64% de rejeição, enquanto a aceitação por Cristina sobe de 5 pontos após os “Cadernos” e a perseguição judicial. Macri, bastante desconcertado, chegou a responsabilizar os “Cadernos” e a crise internacional por toda a “tormenta”. O risco país da Argentina de Cambiemos chegou a 726, a economia caiu (-6,7%), a indústria caiu (-7,5%), o dólar chega a 31 pesos, os capitais escapam do país, a inflação já cerca dos 35% com os preços dolarizados dos produtos de primeira necessidade e da energia; enquanto isso, o Wall Street admite que a Argentina entrará em default. O que isso significa para a classe média, os trabalhadores e as camadas mais pobres? Perda do poder aquisitivo dos salários (um professor ganha 283 dólares, quando em 2015 recebia 537 dólares); desemprego em massa; 1,5 milhão passando fome; corte eminente nas pensões, no plano de vacinas e medicamentos; comedores populares lotados, precariedade escolar, 57 universidades públicas sem verbas; famílias que não chegam ao fim do mês e novos sem tetos que abundam. Enfim, os “Cadernos” não conseguem ocultar a realidade. “As pessoas não comem cadernos”, como dito por Cristina Kirchner.
O circo da invasão domiciliar não supera a grandeza do discurso da ex-presidenta
Apesar do cerco do circo midiático, no dia da aprovação no Senado da ordem de busca e apreensão domiciliar do juiz Bonadio, o discurso final da senadora Cristina Kirchner, como líder do Bloco da Unidade Cidadã, foi o maior show do contra-ataque; teve que ser transmitido na íntegra, em cadeia nacional de TV. Assista o histórico discurso em que a ex-presidenta resolve enfrentar o boi pelo chifre e decide aceitar a inspeção domiciliar, devolvendo o feitiço contra o feiticeiro, desmascarando perante a nação e o mundo, da tribuna do Senado, a insólita perseguição política do juiz Bonadio. Com inteligência e valentia, atacou pontualmente as atrocidades do governo Macri, as vacilações da direita do Partido Justicialista (Bloco da Argentina Federal, do pré-candidato Pichetto), e denunciou o lawfare como estratégia regional de ataque a ela e às lideranças populares como Lula/Dilma e Rafael Correa. Cristina denunciou a perseguição contra Lula no Brasil, respondendo ao senador Pichetto (que havia feito uma alusão a Bolsonaro): “Quem pode ser presidente e vence no primeiro e segundo turno, se chama Luís Inácio Lula da Silva. E se não pode competir, vencer e ser presidente, sabe porque é, senhor senador? Porque o mandaram prender, pois vencia as eleições”. Veja esta parte do discurso. Ao referir-se à farsa dos “arrependidos” delatores provenientes das fotocópias dos “Cadernos”, demonstrou sua estirpe de líder política nacional e latino-americana: “Eu não me arrependo nada do que fiz!” E enumera com eloquência a lista das medidas sociais que brindou ao povo argentino durante o seu governo. Com este discurso, Cristina abre um horizonte de esperança, para voltar e recolocar nos eixos o projeto nacional e popular, nas eleições de 2019.
A reação brutal e ilegal do poder Judicial nas operações de invasão domiciliar, após a votação no Senado, reforçam, contrariamente, um rechaço popular contra o governo. Como já dito: quanto mais batem na massa, mais ela cresce. Em todos os lados, semáforos, praças, pontes e viadutos há faixas e aglutinações populares, de comitês de bairro e organizações políticas por “Força Cristina!”. As responsabilidades pelo golpe jurídico-midiático são cada vez mais evidentes para a opinião pública. Os 41% de intenção de voto ao Lula, os Lulaços em apoio ao único candidato que protagonizou uma experiência concreta de governo, embora inacabada, mas bem sucedida, e mundialmente reconhecida, são indicativos da contra-marcha popular no Brasil e na Argentina.
Não há como subestimar a consciência e a memória do povo, sobretudo com a história e a organização social da Argentina.
O ocorrido em La Plata, um dia antes da votação no Senado, é parte deste quadro de polarização de classe provocada pela precarização extrema da vida no país. As empresas estratégicas na área militar têm sido uma das vítimas dos cortes fatais no Estado. Como já ocorrido na fábrica militar de Azul, o Estaleiro Rio Santiago de Ensenada (2a. cidade industrial mais importante, em plena recessão) se encontra ameaçado de fechamento, produto da política de importação de embarcações da França e de Israel. Três mil e trezentos trabalhadores se manifestaram pacificamente e foram violentamente reprimidos pelos órgãos de segurança da governadora Vidal. Nesse mesmo dia, ao lado, na reitoria da Universidade de La Plata se realizava um comovente velório de Chicha Mariani, 94 anos, histórica fundadora das Avós de Praça de Maio.
Este é o quadro conflitivo na Argentina que supera a farsa dos “Cadernos”. Professores em luta, sem que sua proposta de 19% (frente a uma inflação prevista de 40% ao fim do ano) fosse aceita, decretam 3 dias de greve na Província de Buenos Aires. Professores estudantes das 57 universidades públicas (criadas no governo Kirchner e agora sem verbas), Centros de Pesquisa (Conicet) esvaziados, protestam organizando aulas ao vivo na Praça de Maio, e a docência universitária prepara uma greve geral no dia 29.
A tudo isto se juntam iniciativas em todo o país na defesa da integridade e dos direitos políticos de Cristina Kirchner, diante do quadro político que ameaça a cassação do seu mandato no Senado e até mesmo a sua prisão. O jornal “Tempo Argentino” acaba de noticiar uma gigantesca manifestação que se prepara para o próximo dia 8 de setembro na avenida 9 de julho, contra o estado de perseguição e proscrição, e em solidariedade à ex-presidenta Cristina Fernandez de Kirchner.
Buenos Aires
27/08