O que Cuba nos ensina sobre saúde e pandemia?


Publicado no Favela em Pauta

Ludmila Almeida

Imersa na catástrofe da pandemia e ao embargo econômico dos EUA, Cuba evita por um lado a proliferação do vírus pela ilha enquanto expande a solidariedade médica para o restante do mundo.

Conhecida por estremecer e enfurecer a base imperialista norte-americana e enfrentar esse exército, Cuba é marcada pelos feitos de Che Guevara e Fidel Castro. Porém, é também o país de mulheres como Vilma Espín, Celia Sánchez, Haydée Santamaría, além do pelotão de mulheres “Las Marianas”, heroínas que estavam na linha de frente para a efetivação da Revolução Cubana. Esta foi um posicionamento contra o ditador Fulgêncio Batista que pretendia tornar a ilha uma colônia dos Estados Unidos, tal marco, após 1959, reorganizou o país e tais ideias permanecem até os dias atuais. 

É preciso esse pequeno panorama, para compreendermos de qual lugar estamos falando, pois não é possível ler Cuba atual sem antes saber que a Revolução foi precedida por rebeldias de personagens como José Martí e Mariana Grajales. Ele foi um dos fundadores do Partido Revolucionário Cubano, em 1892, comprometido com a transformação do pensamento político para a independência de Cuba. Ela, Grajales, conhecida como a heroína da pátria ou mãe da pátria, já no início do século XIX lutava não só pela independência cubana, mas também pelo fim da escravidão e dedicou sua vida a isso.

O ser rebelde em Cuba está alinhado à manutenção da solidariedade e da soberania nacional, esse caminho foi traçado por anos de luta antes, durante e depois do marco da Revolução Cubana que completou 62 anos. No entanto, romper com o imperialismo estadunidense gerou consequências das quais os cubanos ainda enfrentam, uma delas é o bloqueio econômico, financeiro e comercial que obriga os países aliados a grande potência das américas, os EUA, a não realizar transações com Cuba. O que limita a busca de mercado por recursos e sobrevivência do povo, e aumenta tais custos por se ter que comprar de países distantes. 

E esse bloqueio, o grande catalisador dos problemas econômicos da ilha, principalmente, durante a pandemia, também atua nos meios de comunicação e na história geral das américas ao atacar e silenciar o posicionamento de Cuba, e endeusar as ações dos EUA. Uma batalha por narrativas que tenta tornar o sistema capitalista a salvação do mundo, enquanto nomeia o socialismo como barbárie. 

A Revolução Cubana foi uma tomada popular do poder e é um exercício constante de valores humanitários. Sua implementação logo após 1959, mediante mudanças estruturais ao longo dos anos, foi para manter saúde e educação gratuitas, e a reforma agrária para todas as pessoas, de forma que a terra é do povo e de quem nela produz. 

“O sistema aqui não colapsa”

Reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o sistema de saúde pública e universal cubano se tornou exemplo devido a sua forma de barrar o vírus. A ilha socialista, quase um ano após a divulgação do novo coronavírus, contabiliza, nesse momento, 153 falecidos em um país com 11,34 milhões de habitantes. A nível de comparação, só na cidade de São Paulo, com um pouco mais de 12 milhões de habitantes, já se tem quase 48 mil mortes. 

Fazer muito com pouco é preciso estratégia, estudo e diálogo do povo com seus representantes. Cuba logo ao saber da pandemia que se espalhava pelo mundo tomou medidas preventivas conforme as recomendações da OMS, orientando a população, aplicando multas a quem não respeitasse e identificando os primeiros casos. 

Segundo Iriana Pupo, editora da TV Cubana e cineasta, o governo tomou 121 medidas junto aos dirigentes cubanos, realizou PCRs (exame de Proteína C-reativa) e quem era testado positivo foi levado aos “Centros de aislamientos” da saúde pública. Os aeroportos também foram fechados em março, limitando a circulação de turistas, e só foram reabertos em outubro dentro das medidas protetivas com a apresentação de teste negativo na chegada, uma realização de PCR no aeroporto e outra em cinco dias, o resultado do exame é recebido em até 24 horas. 

“Em 11 de março de 2020 chegou em Cuba a covid-19, mas Cuba já tinha tomado todas as medidas. Já se sabia por onde ia entrar, por qual país, quem estava desatendido, já estava feito o estudo e de maneira preventiva todo o país já estava alerta e já se estava fornecendo todas as notícias. Se fez um espaço onde se deu uma justa informação para que não se tivesse falsas notícias”, diz a cineasta cubana.

Com a divulgação diária sobre os números e avanços no combate a covid-19, Cuba utiliza os meios de comunicação para manter a população atualizada e esclarecer termos médicos. Quem está à frente desse combate a nível nacional é o Diretor Nacional de Epidemiologia do Ministério de Saúde Pública de Cuba, Dr. Francisco Durán García, que também realiza as coletivas de imprensa todos os dias no período da manhã. 

Pela tarde, nos conta Maria Auxiliadora, professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) e residente temporária em Cuba, ocorre uma “Mesa Redonda” para se conversar sobre a covid-19 e dela participam, alternadamente, o presidente da República, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, ministros, cientistas de diferentes organismos, decanos de universidades e representantes de instituições científicas de diferentes áreas, uma colaboração intersetorial e interdisciplinar.

“Sempre a saúde pública em Cuba tem sido prioridade, e não só prioridade, mas também preventiva. Ou seja, além dos hospitais policlínicos, temos também consultórios médicos a cada 120 famílias cubanas. Um consultório é constituído por um médico da família, com um enfermeiro ou enfermeira”, pontua Iriana. 

“Isso permite que a saúde seja uma dimensão social que se inicia no indivíduo, mas passa pela sua inserção familiar e, consequentemente, sua inclusão social e comunitária”, reitera o Dr. Félix Santoyo Rodríguez, especialista em Medicina Geral Integral, diretor da Policlínica 5 de Septiembre em Havana e que tem participado das pesquisas para o enfrentamento à covid-19.

Além disso, Maria Auxiliadora diz que em 2020 o número de Centros de Diagnósticos do vírus passaram de 3 para 18, aumentando a realização dos testes diários. Outras medidas foram a qualificação e treinamento das equipes de saúde, mobilização geral das fábricas para a produção de suprimentos básicos, maior atenção à higiene nas penitenciárias. O cuidado também se direciona a equipe médica, que antes de voltar para suas famílias passam por um período em quarentena e até os contatos dos contatos da pessoa contaminada são mantidos sob vigilância sanitária.

“O sistema aqui não colapsa. O Protocolo de tratamento de Cuba tem um esquema rígido de busca, internação e de atendimento. Não há como em outros países, hospitais cheios, mortos nas ruas, menos período de tratamento, pessoas que não podem pagar, etc.”, relata a professora.

“Quanto mais uma sociedade tende a privilegiar valores sociais, humanitários e de solidariedade, mais ela tende a ser igualitária. E quanto à pandemia esses valores não podiam ser diferentes. Outro aspecto a destacar é a relevância dada à ciência e aos cientistas, aos profissionais de saúde, à importância da vida humana mais do que a economia, que privilegia os mais ricos e poderosos”, afirma a professora brasileira e residente temporária em Cuba, Maria Auxiliadora, a respeito das diferenças de prioridade em um país socialista e os interesses dos países capitalistas. 

Já no Brasil, a saída de mais de 8 mil médicos cubanos, em 2018, devido a alterações do governo brasileiro a acordos firmados desde o início do programa, abriu precedentes para o sucateamento da saúde pública e a incapacidade de um plano nacional para lidar com a pandemia. Isso foi percebido, especialmente, nas periferias, em comunidades quilombolas, indígenas, assentamentos, comunidades ribeirinhas e nos Sertões. Onde o Programa Mais Médicos atuava na prevenção, a partir de uma medicina humanizada e sem preconceitos, junto a pessoas que vivem nos locais mais remotos do Brasil. 

O bloqueio dos EUA é genocídio

Apesar do período pandêmico, o governo de Trump reforçou o bloqueio aplicando mais 17 medidas que impedem Cuba de fortalecer o ramo da agricultura, da alimentação, da educação, da compra de equipamentos de saúde, matéria-prima para a produção de medicamentos contra a SARS-CoV-2 e o aumento da imunidade. O embargo barra o país a receber doações ou fazer compras no exterior com países aliados aos Estados Unidos, uma sanção que já dura mais de 60 anos como resposta à insurgência cubana que não aceita os pressupostos de dominação econômica e de imperialismo cultural sobre a ilha.

“Neste país, atualmente, as filas são muito grandes para comer. Não tem remédios e não estou falando apenas que não tem remédios para as crianças que têm câncer, não tem nenhum tipo de vitamina para os idosos. Nem mesmo a simples aspirina se tem em Cuba. Nós temos medicamentos que a saúde pública cubana produz, mas não tem uma forma de a industrializar devido ao bloqueio econômico dos Estados Unidos a Cuba”, afirma Iriana sobre as consequências vingativas da potência econômica, localizada a cerca de 140 quilômetros, ao povo cubano.

Impedidos de obter recursos rápidos e com menor custo, a única saída foi reforçar a proteção e prevenção contra a covid-19 que poderia devastar o país de forma rápida. No entanto, o fechamento de hotéis e do ramo turístico, que fornecia respaldo à economia cubana, ocasionou no aumento dos preços dos produtos de alimentação e de limpeza, forçando o governo a um “Ordenamento Monetário”

“Na ONU, quando é apresentada a cada reunião uma proposta de Cuba sobre o tema, só 2 ou 3 países votaram contra a proposta e mais de 200 votaram a favor de Cuba”, ressalta Maria Auxiliadora. “Na última votação pela primeira vez o Brasil acompanhou o voto dos Estados Unidos. Trata-se o bloqueio de uma série de leis que só o Congresso dos Estados Unidos pode votar para derrotá-lo. Há um clamor internacional de organizações, de países, de organizações internacionais de solidariedade, de Justiça e Paz, pois o bloqueio afeta todos os setores da sociedade cubana e afeta sobremaneira o cotidiano da população e é genocida, pois impede o acesso a medicamentos e equipamentos de saúde fundamentais”.

“Aqui não há negacionismo”

Em março de 2020, a ilha começou a busca pela própria vacina e, atualmente, conta com quatro propostas de vacinas, Soberana 1 e 2, Mambisa e Abdalla, as duas primeiras já estão em fase de teste. Em relação aos nomes, a professora Maria Auxiliadora nos conta que “as primeiras designam a Soberania em matéria de saúde e a segunda se refere aos Mambises que lutaram na Guerra da Independência. Abdalla em referência à primeira obra de José Martí escrita aos 15 anos de idade, pois aqui se vive e revive a história da pátria a cada momento.” 

Já é previsto começar em março a imunização a nível nacional e a distribuição gratuita da vacina aos países mais pobres, uma afronta à corrida industrial e financeira da vacina, fomentada pelos países capitalistas. “O governo cubano fez um acordo com a OPAS para que esta adquira vacinas cubanas e garanta a distribuição nas Américas e Caribe segundo seus critérios e sua competência, e não será o governo cubano que decidirá unilateralmente,” diz a professora e residente temporária em Cuba.

A união dos conhecimentos disponíveis nas faculdades cubanas e a resistência impulsionada por décadas são fatores que destacam a ilha socialista nesse enfrentamento colossal à covid-19 e reitera Cuba como sede de uma das escolas de medicina mais avançadas do mundo, a Escola Latino-americana de Medicina (Elam). “Nossas conquistas estão em uma forte faculdade de medicina, em uma formação de valores em profissionais distantes do pensamento comercial e em uma absoluta vontade política de colocar o ser humano em primeiro lugar”, destaca o especialista em Medicina Geral Integral e diretor da Policlínica 5 de septiembre em Havana. “Aqui não há negacionismo por parte de ninguém, posso afirmar com toda segurança, e assim é possível enfrentar esta emergência sanitária”, ressalta Maria Auxiliadora. “Fui ao Brasil em junho, em um voo especial, preocupada com a minha família, e tive que passar 6 meses porque não havia como voltar e senti, infelizmente, a grande diferença que causa o negacionismo em relação a todos os setores da sociedade, inclusive para aquelas pessoas que são negacionistas”.

Enfrentar o vírus, manter o baixo número de mortes, evitar o esgotamento de leitos frente aos problemas econômicos-sociais, é um trabalho realizado mediante os princípios propagados pela Revolução e pelas décadas de investimento à saúde. “No início da pandemia, um jornalista estrangeiro perguntou ao presidente, Miguel Díaz-Canel Bermúdez: “como é possível?”. Então me lembrei de suas palavras em uma das reuniões diárias que preside: “Não é milagre, é socialismo!”, finaliza a professora.

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