A batalha na França para salvar a aposentadoria


As mobilizações ocorridas em toda a França, desde 19 de janeiro a 16 de fevereiro deste ano, contra a reforma da previdência demonstraram o alto nível de insatisfação. Milhares se manifestaram nas grandes cidades, mas também em cidades menores e áreas rurais. Ninguém esperava tanta gente nas ruas e muitas delas que se manifestaram pela primeira vez em suas vidas.

A Frente Sindical, que uniu as oito organizações mais importantes para se opor ao aumento da idade da aposentadoria para 64 anos, representou o elemento mais importante desta primeira parte da batalha; unidade que não existia a treze anos a nível nacional, resultado da pressão da base operária e dos trabalhadores que expressaram um descontentamento geral contra esta reforma injusta e injustificada e contra todas as medidas de retrocesso deste governo.

Esta luta também mostrou, por sua relevância, que as questões levantadas pelos grevistas e pelos manifestantes seguia muito além da simples reforma da previdência. Tal como em 2019 nas mobilizações dos Coletes Amarelos, são escolhas sociais que são questionadas hoje num contexto de deterioração constante das condições de vida e de trabalho: implementação de novas formas de gestão impostas pelos empregadores, baseadas no desempenho, uberização das relações de trabalho, perdas de referenciais para tele-trabalho, mas também quebra de serviços públicos, aumento de preços, inflação, impossibilidade de habitação digna, agravamento das desigualdades sociais e da pobreza e inação climática.

UMA REFORMA VIOLENTA CONTRA OS TRABALHADORES

Esta reforma cristalizou toda a insatisfação dos trabalhadores, do setor público e privado, dos aposentados, jovens, mulheres, contra uma política liderada por Macron e seu governo que vai sempre na mesma direção: estigmatizar as pessoas que trabalham duro, em condições dolorosas, aquelas que na linha de frente foram aplaudidas durante a pandemia da Covid e que não viram nenhuma melhoria concreta nas suas condições de vida, os que se vêem obrigados a trabalhar ainda mais sem que sua opinião seja levada em conta e sobretudo no seu direito a uma merecida reforma favorável na área da saúde.

Acrescenta-se à reforma do seguro desemprego que entrou em vigor em 1º de fevereiro de 2023 com uma redução das despesas com prestações na ordem de 4,5 bilhões de euro reduzindo imediatamente em 12% o número de beneficiários de indenizações, ou seja, pouco mais de 300 mil pessoas. Estas duas reformas que o governo quer implementar de maneira acelerada – o seguro desemprego e as pensões – prevêem uma poupança de 17 bilhões de euros até 2027.

O governo está dizendo que se não agirmos agora, nosso sistema previdenciário irá à falência, que teremos que trabalhar mais para obter pensões mais altas, que esta reforma será mais justa do que antes em especial para as mulheres. Tudo é falso, o sistema estava superavitário em 3 bilhões de euros em 2021, as previsões supostamente científicas baseiam-se num déficit que deverá ocorrer daqui a 25 anos. Na verdade, o objetivo principal é desmantelar nosso sistema de segurança social baseado na solidariedade, um sistema que foi criado em 1945 no final da guerra, por um sindicalista e comunista eleito deputado, Ambroise Croizat.

Durante os dois anos de Covid o governo concedeu aos empregadores e às empresas ajudas financeiras e isenções de contribuições na ordem de 157 bilhões de euros em 2021, que pretende recuperar sem recursos com aumento de impostos generalizados. Para preservar os setores econômicos mais importantes, aqueles que tem mais recursos e obtém lucros indecentes, que se transformam em dividendos para seus acionistas – mais de 80 bilhões de euros foram distribuídos em 2022 aos acionistas das empresas CAC40 –, este governo fez a opção política de criar um novo imposto sobre o trabalho e sobre os empregados. O aumento do tempo de trabalho por meio do alargamento da idade para a aposentadoria, permitirá aumentar as contribuições em mais dois anos para quem terá naturalmente uma carreira completa, e assim financiar outras políticas públicas como a educação nacional ou a transição ecológica e energética.

Não tem absolutamente em conta as pessoas que, a partir dos 50 anos se veem rejeitadas no trabalho porque se tornariam inúteis e muito caras e que, no final da carreira, se encontram sem emprego e sem pensão, em grande precariedade tendo por recursos apenas os mínimos sociais. Tampouco leva em conta a realidade do trabalho das mulheres que compreendem a maior parcela de empregos precários com salários bem inferiores ao dos homens. Um grande número delas não pode reivindicar uma pensão completa mesmo aos 64 anos e terá que trabalhar até os 67 anos ou mais para ter direito a uma pensão decente que lhes permita viver com dignidade.

Esta reforma da previdência é a gota d’água, até porque todos os argumentos deste governo não têm fundamentos sólidos e claros, baseados em números comprovados e plenamente verificáveis. Assim ficou demonstrado no debate na Assembleia Nacional onde o Primeiro-Ministro e o Ministro do Trabalho não conseguiram fornecer os elementos para convencer que havia urgência em legislar e como a reforma significaria um progresso. Por outro lado, os deputados do Novo Núcleo Popular Ecológico e Social (Nupes), ao irem buscar os números onde eles estavam, ou seja, na Diretoria de Serviços de Previdência Social, desmantelaram as mentiras do Ministro do Trabalho Oliver Dussopt. Dos 2 milhões de franceses com salário mínimo (smic) com carreira completa, que segundo ele deveriam se beneficiar de uma pensão de 1.200 euros brutos, reduziu-se para 125.000, depois para 40.000; número que acabou reduzido para 13.289 pessoas segundo os valores fornecidos pelos serviços em causa.

A IMPORTÂNCIA DA UNIÃO E DA UNIDADE POLÍTICA

Os sindicatos na França estão enfraquecidos há trinta anos pela desindustrialização, deslocalizações do trabalho, mas também pela redução dos serviços públicos e pela precariedade dos empregos. Eles não têm mais a força que tinham antes em setores como a metalurgia, o automobilístico ou o ferroviário, apesar de que os trabalhadores desses setores ainda representem um peso significativo nas greves e mobilizações.

Essa situação fez com que as grandes organizações nacionais perdessem parte de sua representatividade, tanto no setor público quanto no privado, com uma redução expressiva no número de associados, o que as levou a formas de competição entre si, burocratização, em vez de defender interesses comuns. A situação é bem diferente no nível local. É aí que se encontram organizações capazes de se opor às concessões das organizações nacionais e de exercer forte pressão sobre suas federações para obrigá-las a lutar, não mais apenas por melhores salários ou condições de trabalho, mas contra as injustiças, as desigualdades, as nefastas consequências do sistema capitalista em termos de meio ambiente estando mais em contato com as realidades vivenciadas pelos trabalhadores e atores do campo.

Os avanços na tecnologia também levaram a uma mudança significativa no mundo do trabalho, em direção a uma sociedade de serviços e ao setor terciário. A uberização transformou os assalariados em autônomos, sem contrato de trabalho, mas subordinados a um patrão, e o tele-trabalho cortou todas as relações coletivas. Essas novas formas de alienação em ação desenvolveram uma consciência muito maior da necessidade de vincular questões sociais a questões políticas e ecológicas. Isso se expressa de diversas formas, pelo fato de cada vez mais pessoas questionarem o sentido do trabalho e o lugar que ele ocupa na sociedade, mas também em novas ações. É o caso da mobilização de trabalhadores em plataformas digitais, motoristas de VTC ou entregadores de refeições que criaram seu próprio sindicato para obter direitos e que em alguns lugares se organizaram em cooperativas. 

Hoje a unidade sindical em nível nacional foi imposta de baixo para cima. É extremamente importante criar um equilíbrio de poder para vencer a batalha contra o desmonte de todo o sistema social e a destruição de tudo o que foi conquistado pelos trabalhadores. A união dos oito maiores sindicatos foi conquistada nessa luta para manter nosso sistema previdenciário como está. Foram realizadas 5 grandes etapas de greves e manifestações em toda a França e manteve-se seu alto nível de mobilização durante todo esse período. Mas esse sucesso também vem do apoio ativo dos partidos políticos de esquerda, nas ruas e no debate na Assembleia Nacional, que tem permitido ampliar as mobilizações com a incorporação de jovens de colégios e universidades, professores, setores artísticos e culturais e, em alguns lugares artesãos, comerciantes, pequenos agricultores.

O SEGUNDO TURNO ESTÁ POR VIR

A rodada está marcada para os dias 7 e 8 de março, após o término do período de férias. Não será fácil segurar e precisará da manutenção da unidade em ações mais espetaculares do que as anteriores. A intersindical pediu outras formas de luta contra o fechamento do país e o direcionamento de pontos de bloqueio da economia. A CGT, por sua vez, se pronunciou a favor das greves renováveis com bloqueios de refinarias, ferrovias ou do metrô de Paris. É somente no enfraquecimento do poder econômico que será possível criar um novo equilíbrio de poder para fazer o governo ceder.  Os debates sobre o projeto de reforma, que não conseguiu ir até o fim na Assembleia Nacional, vão agora acontecer no Senado, majoritariamente ultraliberal. Mas o que os deputados do Nupes têm possibilitado, através dos amargos e às vezes violentos confrontos conduzidos na Assembleia, é demonstrar as falhas da reforma, as mentiras dos ministros e os méritos da enorme resistência da população. Isso criou um grande desconforto entre alguns deputados de direita, que têm que enfrentar muita raiva dos seus eleitores que eles não haviam previsto, o que os coloca frente a frente com seu papel de eleitos e desafia seu apoio a esta reforma.

Todos aqueles que se mobilizam na rua dizem: não à extensão da idade legal de aposentadoria de 62 para 64 anos! retirada total dessa conta! Não a esta reforma que não traz nenhuma melhoria para a população, mas uma regressão total!

Outros países da Europa já sofreram o impacto dessas mudanças políticas e sociais e agora observam que a extensão da idade da aposentadoria, que em alguns países foi votada além dos 67 anos, só trouxe um aumento da precariedade e da pobreza para uma parcela expressiva da população.

É preciso continuar a luta com a maior unidade possível, seja nos sindicatos ou nos partidos políticos de esquerda e continuar demonstrando que outros financiamentos são possíveis para manter as condições de uma aposentadoria justa e solidária. É preciso tributar os mais ricos, os superlucros das corporações.  Para aumentar o volume das contribuições sociais é necessário aumentar os salários, impor boas condições de trabalho a todos com idêntico nível de contribuição para todas as empresas, igualar direitos para todos, em particular remunerar as mulheres ao mesmo nível que os homens. Reduzir a jornada de trabalho para que os mais jovens possam ter um emprego, para que aqueles que tem um trabalho duro possam aposentar aos 60 anos com aposentadoria integral, independentemente do tempo efetivamente trabalhado. É preciso impor, por meio de lutas, medidas de transformação social que beneficiem a todos.

Les Posadistes

Direto de Paris, 25 de fevereiro 2023

Foto destaque: Manifestação em Paris contra a reforma previdenciária ( 31/01/2023)

https://lesposadistes.com/la-bataille-en-france-pour-sauver-les-retraites-premier-round/

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