Ibrahim Traore discursa na cimeira Rússia-África em São Petersburgo


APRESENTAÇÃO Publicamos abaixo o discurso completo proferido pelo Capitão Ibrahim Traore, Presidente da transição em Burkina Faso, na 2ª reunião de cimeira Rússia-África que se realizou nos dias 27 e 28 de julho de 2023 em São Petersburgo. Este discurso profundamente anti-imperialista mostra que o pensamento de Thomas Sankara ainda está muito vivo na Terra dos Homens Justos, num processo em que o continente africano afirma a sua independência e rumo a novos Estados revolucionários. “O tempo da escravização de África pelos regimes ocidentais acabou e a batalha pela independência total começou”. 

Burkina Faso ressurge no plano internacional, entre países rebeldes de Sahel e do Saara, com dois presidentes revolucionários; antes, Thomas Sankara e, agora, Ibrahim Traore, entre duas decolagens revolucionárias, dois ataques ao céu, e no meio um vale escuro e esfarrapado com 36 anos de duração. Ambos jovens soldados: Sankara mais popular numa sociedade optimista e saudável; Traoré numa sociedade duramente atingida pelo ISIS, em casa e na área circundante. Sankara isolado com uma Argélia ausente, e a Etiópia distante, na África francófona, sem buscar o apoio da URSS, ou de Kadaffi que, por sua vez, há mais de 10 anos, abandonado pela política conciliadora dos russos de então, teve a Líbia revolucionária destruída pela OTAN,


Thomas Sankara

Agora, passados os anos da caída da URSS, Burkina Faso, de Traore, reencontra o apoio de Putin, no contexto do ressurgimento da Rússia, de um BRICS-11 que se consolida com a união China-Rússia, com o apoio do Irã revolucionário e um novo mundo multipolar que põe em xeque o imperialismo norte-americano do pós-guerra de Wall-Streat e exalta à Rússia, em pleno Petrogrado, a cumprir seu papel histórico contra o nazismo, apoiando o  “camarada Putin” que está disposto a reverter a história do colonialismo na África. O mesmo Putin que acaba de receber King Jong-um, presidente do Estado operário da Coreia do Norte, assegurando acordos militares preventivos frente às ameaças imperialistas que poderão mover-se da Ucrânia à Ásia.

“A Rússia fez enormes sacrifícios para libertar o mundo do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. ... Tendemos a ignorar o papel fundamental desempenhado pela Rússia e pela África na luta contra o nazismo.” (Traoré)

Eis Burkina Faso que se destaca novamente depois de Thomas Sankara, no coração da África, unindo-se ao Mali e ao novo Níger, para constituir uma Aliança de Defesa Coletiva. Leia sobre o acordo na Carta Liptako-Gourma (em referência à região do noroeste da África que faz parte do Sahel) divulgado pela Prensa Latina/RT.

Traore está no meio dos países rebeldes do Sahel e do Sahara, com a Rússia e a China Popular presentes. O G-77 + China, em plena Cuba, se desconecta do modelo de submissão aos EUA e consolida acordos para a soberania dos países chamados subdesenvolvidos do novo mundo multipolar. Enquanto isso, a China que não esteve na reunião do G-20, recebeu o presidente Nicolás Maduro da Venezuela e firmou dezenas de acordos de cooperação. A França em retirada, batendo a porta do BRICS, em condições econômico-sociais internas muito desfavoráveis, pagando o custo da guerra da Otan-EUA na Ucrânia, não tem campo para manter uma guerra colonial na África. Victoria Nuland (EUA) pode fazer pouco contra o Níger, e Antony Blinken (EUA) fala no fim do mundo multipolar, correndo para pedir ajuda dos comunistas chineses. Tremenda crise do imperialismo, que não exclui que setores concentrados dos armamentos e das altas finanças se lancem, em desespero e descontrole, à guerra atômica contra a humanidade.

O fato real é que as manifestações contra a OTAN como esta em Praga, tendem a aumentar, a se ampliar, e a criar brechas no território otanista. Vão desde Madrid, Berlin a Vienna, Praga e Budapest. Mesmo que misturem insatisfação social com as consequências da guerra e que não tenham uma orientação política clara, mas o sentimento antifascista e antinazista dos europeus não pôde ser totalmente sufocado pela propaganda otanista. Isso vai aflorar, cedo ou tarde, porque a guerra está se revelando, um enorme fracasso militar, político e econômico do Ocidente decadente. Ibrahim Traore é produto desta época de renascimento da África independente que já nos anos 70 deram origem a Estados Revolucionários em Angola e Moçambique, estimulando a revolução dos cravos em Portugal.

Os Estados reacionários da CEDEAO (Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental) demoram e não intervém contra o Níger, pois em breve terão os mesmos rebeldes em casa. Níger, apoiado por Mali e Burkina Faso já deram um “Alto lá!”, criando a Aliança de Defesa Coletiva. E já deixaram claro: “Qualquer ataque à soberania e integridade territorial de uma ou mais partes signatárias será considerado uma agressão contra as outras partes, e dará origem a um dever de assistência […], incluindo o uso da força armada para restaurar e garantir a segurança”. O presidente Afewerki da Eritreia diante de Putin e a diplomacia russa disse: “A Otan, dirigida por Washington, foi quem declarou a guerra à Russia há 30 anos”. Declarações como esta e outras no G77+China em Havana, são expressões do amadurecimento político e ideológico determinante para o destino do mundo e de qualquer país. O discurso de Ibrahim Traoré em Petrogrado é o termômetro desta nova relação de forças mundiais.

Comitê de Redação
16/09/2023

 

DISCURSO DO PRESIDENTE DE BURKINA-FASO, IBRAHIM TAORÉ

Camarada Presidente Vladimir PUTIN,

 Camaradas Presidentes e Chefes de Estado Africanos,

 Camaradas Chefes de Delegação,

 

Bom dia.

É uma honra para mim esta manhã falar aqui e transmitir-vos as saudações fraternas do povo do país dos “homens íntegros”.

Este é também o lugar para mim, antes de mais nada, dar graças a Deus, Deus Todo-Poderoso, que nos permitiu encontrar-nos aqui esta manhã, com boa saúde, para falar sobre o futuro e o bem-estar dos nossos povos.

Gostaria de pedir desculpas a todos os idosos que possam ficar ofendidos com meus próximos comentários. A africanidade obriga ao direito de nascimento. Eu devo pedir desculpas.

Camaradas, Tenho algumas perguntas da minha geração. Mil e uma perguntas. Mas não temos resposta.

E acontece que aqui podemos lavar a nossa roupa suja porque nos sentimos como uma família, sentimo-nos como uma família no sentido de que a Rússia é uma família também para África. Somos uma família porque temos a mesma história. A Rússia fez enormes sacrifícios para libertar o mundo do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. O povo africano, os nossos avós, também foram deportados à força para ajudar a Europa a livrar-se do nazismo.

Compartilhamos a mesma história no sentido de que somos os povos esquecidos do mundo, seja nos livros de história, nos documentários ou nos filmes. Tendemos a ignorar o papel fundamental desempenhado pela Rússia e pela África na luta contra o nazismo.

Estamos aqui juntos porque estamos aqui para falar sobre o futuro dos nossos povos, sobre o que vai acontecer amanhã, sobre este mundo libertado a que aspiramos, este mundo sem interferência nos nossos assuntos internos.

Temos os mesmos objetivos e espero que esta reunião de Cúpula seja uma oportunidade para estabelecer relações muito boas com o objetivo de um futuro melhor para os nossos povos.

As perguntas que minha geração está fazendo são as seguintes. Se posso resumir, é que não compreendemos como África, com tanta riqueza no nosso solo, com uma natureza generosa, água, sol em abundância, como é que África é hoje o continente mais pobre. A África é um continente faminto. E como é que há chefes de estado em todo o mundo a mendigar? Estas são as perguntas que nos fazemos e até agora não temos respostas.

Temos a oportunidade de estabelecer novas relações e espero que essas relações possam ser as melhores para proporcionar aos nossos povos um futuro melhor. A minha geração também me pede para dizer que por causa desta pobreza são obrigados a atravessar o oceano para tentar chegar à Europa. Morrem no oceano, mas em breve não terão mais que atravessar, porque virão aos nossos palácios em busca do pão de cada dia.No que diz respeito a Burkina Faso hoje, durante mais de oito anos temos sido confrontados com a forma mais bárbara e mais violenta do neocolonialismo imperialista. A escravidão continua a impor-se sobre nós. Os nossos antecessores ensinaram-nos uma coisa: um escravo que não consegue assumir a sua própria revolta não merece pena. Não sentimos pena de nós mesmos, não pedimos a ninguém que sinta pena de nós. O povo de Burkina Faso decidiu lutar, lutar contra o terrorismo, para relançar o seu desenvolvimento.

Nesta luta, pessoas valentes de 20 populações comprometeram-se a pegar em armas face ao terrorismo. A isso chamamos carinhosamente de VDP dos voluntários [2]. Ficamos surpresos ao ver os imperialistas chamarem estes VDPs de milícias e todo tipo de coisas. É decepcionante porque, na Europa, quando as pessoas pegam em armas para defender a sua pátria, são chamadas de patriotas. Os nossos avós foram deportados para salvar a Europa. Não foi com o consentimento deles, [foi] contra a vontade deles. Pois bem, ao regressarmos, recordamos bem que em Thiaroye, quando quiseram reivindicar os seus direitos básicos, foram massacrados [3].

Não importa, então, que quando nós, o povo, decidimos nos defender, sejamos chamados de milícia. Mas esse não é o problema. O problema são os chefes de Estado africanos que não contribuem em nada para estas pessoas que lutam, mas que cantam a mesma canção que os imperialistas, chamando-nos de milícias, chamando-nos de homens que não respeitam os direitos humanos. De que direitos humanos estamos falando? Nós nos ofendemos com isso, é vergonhoso. Nós, chefes de estado africanos, devemos parar de nos comportar como marionetas que dançam sempre que os imperialistas puxam os cordelinhos.

Ontem, o Presidente Vladimir Putin anunciou que iria enviar cereais para África. Estamos muito satisfeitos. Agradecemos a ele por isso. Mas é também uma mensagem para os nossos chefes de Estado africanos. Porque no próximo fórum não podemos vir aqui sem garantir, para aqueles que não estão familiarizados com a guerra, que o nosso povo seja auto-suficiente em alimentos. Precisamos de aproveitar a experiência daqueles que já conseguiram isto em África, construir boas relações aqui e construir melhores relações com a Federação Russa para que possamos satisfazer as necessidades do nosso povo.

Não vou demorar. O tempo é muito curto. Temos que parar em um determinado ponto. Mas gostaria de terminar dizendo que devemos, portanto, prestar homenagem aos nossos povos, aos nossos povos que lutam. Glória aos nossos povos Dignidade para nossos povos Vitória para nossos povos Pátria ou morte, venceremos! Obrigado camaradas

Capitão Ibrahim Traoré, Presidente da Transição em Burkina Faso

Foto acima: Capitão Ibrahim Traoré de Burkina Faso na Cúpula Rússia-África 

(1)    Burkina Faso foi nomeado Alto Volta pelos imperialistas. A palavra ‘Burkina’ significa “homens íntegros” na língua Móoré. ‘Faso’ significa “terra de” na língua Dyula. Existem 70 línguas faladas em Burkina Faso. O francês é o oficial, mas não o mais falado. A língua Móoré é uma das outras 4 línguas oficiais. Móoré é a língua de cerca de 8 milhões de pessoas Mossi em Burkina Faso, Gana, Costa do Marfim, Benin, Níger, Mali, Togo e Senegal. O sistema de escrita é baseado no latim com o alfabeto Móoré. Dyula é uma língua Níger-Congo usada também na Costa do Marfim, Burkina Faso e Mali, falada por cerca de 1,5 milhão de pessoas. Em 2 de agosto de 1998, o presidente Thomas Sankara do Alto Volta propôs renomear seu país como Burkina Faso. Ao aceitar isto dois dias depois, a Assembleia Nacional expressou a aspiração revolucionária da população de se unir entre os grupos étnicos e construir relações de dignidade humana para todos. Mesmo que o deseje, o imperialismo mundial nunca reverterá esta mudança de nome. O caminho para a terra do povo justo passa, portanto, pela negação da sua negação imperialista. A base material para isso é a construção de Estados Revolucionários e de Estados Operários na região e em África, em solidariedade e unificação com todos aqueles que já progridem no resto do mundo.

(2) Os VDPs são Volontaires pour la Défense de la Patrie. São grupos armados de autodefesa criados para combater os grupos jihadistas do Estado Islâmico e da Al-Qaeda que se espalharam da Líbia em 2015, para chegar ao Níger, ao Mali e ao Burkina Faso. Nos últimos 8 anos, este Ansarul Islam utilizou métodos violentos num espírito de conquista. Em Burkina Faso, cerca de 64% da população é islâmica sunita.

(3)Thiaroye é uma cidade histórica no Senegal, subúrbio de Dakar. Em novembro de 1944, os “Aliados” começavam a derrotar a Alemanha após o desembarque na Normandia. Encorajado a desafiar as ordens alemãs, o exército francês decidiu enviar de volta para Thiaroye alguns dos prisioneiros de guerra franco-senegaleses que tinham sido encarcerados em solo francês pelo exército de ocupação alemão. A repatriação foi organizada de forma desdenhosa para com os soldados negros: reter os seus pagamentos, mantê-los vestidos de prisioneiros, ignorar as suas necessidades e ainda mantê-los num campo francês em Thiaroye – em vez de os libertar. Quando chegaram a Thiaroye, os soldados senegaleses exigiram o seu salário e os seus direitos. O exército francês liderado pelo brigadeiro Marcel Dagnan entrou no campo e acabou abrindo fogo. Dos 2.000 soldados, entre 70 e 400 foram mortos imediatamente. Mais tarde, o Estado francês indiciou, julgou e prendeu alguns sobreviventes por insubordinação. Alguns soldados senegaleses acabaram por ser exonerados, mas nunca perdoados. Este episódio não aparece nos livros escolares de história da França. Um filme sobre o assunto foi proibido na França em 2013. O cemitério de Thiaroye está descuidado e não é visitado. Os túmulos não têm sinalização e o governo do Senegal, até hoje, impede que lá sejam feitos filmes e fotos. Em 12.2.2023, o jornal Le Monde noticiou que os jovens senegaleses “exigem a restauração da memória dos seus soldados ‘tirailleur’”.

 

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