Um “grande debate nacional” para sufocar o verdadeiro debate


Enquanto no final de 2018 os Coletes Amarelos afirmavam sua vontade de continuar seu movimento, Emmanuel Macron lançou três meses de “grande debate nacional” no início de 2019. O objetivo não era apenas ouvir os cidadãos para ter uma visão do que eles querem para o país, e responder com o anúncio de certas medidas, mas sim, frear o movimento social, ganhar tempo e recuperar o controle com grande show midiático diante de uma realidade atualmente dominada por uma enorme onda de protestos em todo o país.

O “grande debate nacional” foi organizado em torno de quatro grandes eixos temáticos: tributação e gastos públicos, organização do Estado e dos serviços públicos, democracia e cidadania, e transição ecológica. Em um site específico, “kits” foram disponibilizadas perguntas fechadas aos participantes às quais eles tinham que responder. Por exemplo, a questão da transição ecológica consistia em 17 perguntas, a maioria das quais se referiam apenas a comportamentos individuais, como o que poderia levar à mudança de hábitos de dirigir (levar seu carro ou meios alternativos de transporte), reduzir seu consumo de energia ou aquecimento. Este grande debate levou à criação de uma enorme maquinaria para processar todos os dados, sintetizá-los e restaurá-los. Os franceses não se contentaram com esses eixos impostos à discussão. Eles se expressaram por todos os meios a sua disposição – reuniões locais, cadernos de cidadãos nos municípios, internet – para mostrar tanto a sua oposição à política liberal realizada por este governo, mas também para contribuir com propostas precisas que possam acabar com as desigualdades sociais. Assim, além dos quatro eixos impostos, intervieram em outras questões como saúde, justiça social, poder aquisitivo, emprego e educação.

Por outro lado, os Coletes Amarelos criaram no final de janeiro o seu próprio site intitulado “o debate real” com um espírito totalmente diferente de democracia participativa, já que partiam de afirmações  e propostas formuladas desde o começo do movimento segundo as quais havia que votar “a favor”, “contra” ou “as duas coisas”. Este voto livre, que contou com mais de um milhão de participantes, permitiu obter rapidamente uma visão clara do que querem os Coletes Amarelos e o que não querem. O tratamento destes dados foi realizado por pesquisas no CNRS1 que identificaram quatro grandes setores na lista de reivindicações, no sentido de uma transformação profunda do sistema politico, um reforço do serviço público, uma forte demanda da justiça social e fiscal, uma visão mais clara da emergência ecológica e climática, ampliado a outros temas como o estabelecimento de outro sistema de educação mais igualitário, direitos iguais para todos, o fim da repressão ou o direito a morrer com dignidade. Este enfoque demonstrou que, sobre a base de contribuições, o movimento se opunha a ideias pré-concebidas difundidas pelos meios de comunicação que pretendiam harmonizar as ideias do movimento com as da extrema direita, como o retorno da pena de morte, o fim da imigração, o rechaço da Europa e o fim do matrimônio igualitário.

Contabilizaram-se quase 2 milhões de contribuições no marco do “grande debate nacional”. Os temas da transição ecológica e o da tributação e o gasto público se destacaram no primeiro lugar das preocupações, superando as perguntas formuladas.

Transição ecológica

Sobre este tema, as propostas trataram de responder a demandas coletivas ao redor da proteção dos recursos naturais, o desenvolvimento da agricultura ecológica e a reciclagem dos resíduos, acelerar as medidas sobre a transição energética, desenvolvendo as energias renováveis, assim como a proibição das inseticidas, a criação de um imposto sobre os grandes poluidores ou a proteção da biodiversidade.

Quanto ao “verdadeiro debate”, os eixos abordados sobre este tema são os da defesa do serviço público nos transportes, a promoção das ferrovias e o transporte das mercadorias por trem. Neste caso também se propõem medidas para a re-nacionalização das autopistas, cujo custo exorbitante foi, em parte o começo da impugnação levada pelo movimento, através de ações pela gratuidade do pedágio, bem como do setor energético (eletricidade, gás, água) e o recolhimento do lixo. Coloca-se também a oposição às novas privatizações em curso nos aeroportos e nas comportas hidráulicas, assim como a necessidade de colocar a indústria farmacêutica sob controle do Estado. Quanto ao setor agrícola, deve-se dar prioridade à agricultura ecológica, à pequena agricultura; deve-se proibir o glifosato e se propõe a criação de um imposto sobre os produtos alimentícios procedentes da agricultura intensiva. Sobre este tema, há uma forte aspiração à preservação do meio ambiente, defendida como um “bem comum de toda a humanidade”, com a petição de cessação imediata do projeto mineiro da “Montanha de Ouro” na Guyana, assim como o rechaço a qualquer projeto de construção de novas centrais nucleares, o envio de resíduos radioativos ao espaço e a exploração de gás de xisto.

Tributação e gasto público

Uma maioria se pronunciou a favor da redução dos impostos e taxas, com a ideia de justiça fiscal que inclui, por um lado, medidas de imposição sobre grandes fortunas e entradas de capital com o retorno do imposto sobre o patrimônio, mas também a luta contra o fraude e a evasão fiscal, reduzindo os impostos às pessoas físicas, os pensionistas, o combustível e o IVA sobre os produtos de primeira necessidade e de consumo corrente. Quanto aos gastos públicos, a ideia de reduzir o estilo de vida do Estado é essencial, entre eles, o âmbito da defesa ocupa um lugar destacado; assim como, elevar a legibilidade e a transparência no uso do dinheiro e dos impostos. No “verdadeiro debate” as posições são muito mais firmes. Insiste-se na justiça social e fiscal onde “os ricos devem pagar muito e os pobres pagar pouco”, sem nenhuma concessão para os que evadem e põem o dinheiro em paraísos fiscais. Portanto, existe uma forte demanda de igualdade nesta esfera onde os evasores devem ser sancionados, mas também na desigualdade de penas existente hoje em dia casos onde “alguns têm todos os direitos (referencia ao caso Benalla) enquanto outros se encontram privados” (referencia à repressão do movimento dos Coletes Amarelos). É necessário reorganizar o gasto público e revisar o estatuto dos bancos privados que são responsáveis da dívida pública e que devem nacionalizar-se. O retorno à ISF (Imposto sobre as grandes fortunas) se apresenta não somente como uma reivindicação da justiça, mas também como um meio de financiar as medidas sociais necessárias para melhorar as condições de vida, como a fixação dos salários e aposentadorias em função das necessidades básicas sociais. O crédito fiscal para as empresas (CICE) deve suprimir-se com uma obrigação de reembolso, se não há criação de emprego, ou limitar-se a pequenas empresas e, em geral, revisar todas as manobras fiscais.

Organização do Estado e dos serviços públicos

É sobre este assunto e sobre as respostas que se evidencia a perversidade das questões colocadas que se dirigem a sustentar as reformas que este governo tenta impor, tais como: se há excessos ou faltas de níveis administrativos, se é preciso dar mais ou menos autonomia para os funcionários no terreno, se há acesso aos serviços públicos ou se existe conhecimento do direito ao erro. Apesar disso, observa-se que um grande número de pessoas tem dificuldade em ter acesso aos serviços públicos devido à digitalização, que é necessária para fortalecer o acesso à saúde nos territórios, especialmente em territórios rurais, onde numerosos hospitais fecharam e onde se expressa uma necessidade urgente de médicos e centros de atendimento; mas também no transporte público, uma vez que nem sempre se adaptam às necessidades da vida quotidiana em termos de horários.

Em geral, os serviços públicos devem melhorar sua qualidade para responder às necessidades da população, e o aspecto humano continua sendo o centro dessa melhoria. Em relação à organização do Estado, existe uma desconfiança importante quanto à casta da função pública e os seus privilégios. No caso dos Coletes Amarelos, além das propostas de re-nacionalização apresentadas no marco da transição ecológica, as ideias coincidem em relação à demanda pela proximidade e igualdade de acesso aos serviços públicos que é proposta para os setores da cidade. infra-estrutura de saúde, educação e transporte. Por outro lado, existe uma forte oposição contra a retirada do Estado e o desaparecimento do estatuto dos funcionários, previsto no roteiro das reformas deste Governo sob o título CAP 2022.

Democracia e cidadania

Sobre esta questão, manifesta-se grande preocupação para redução das indenizações e dos privilégios concedidos aos candidatos eleitorais e ex-eleitos, para a supervisão do exercício de seus mandatos controlando a função exemplar que devem desempenhar. O aumento da participação dos cidadãos na tomada de decisões públicas é outra forte ideia. Neste registro é feita referência às associações e aos sindicatos para os quais é necessário dar um papel mais importante na sociedade. São posições divergentes sobre a renovação do atual sistema baseado na democracia representativa (estabelecendo o referendo sobre a iniciativa cidadã – RIC, reconhecendo o voto branco) ou o surgimento de um novo modelo democrático que levanta, entre outras coisas, a luta contra os lobistas, a segurança dos denunciantes de irregularidades, a ficha limpa obrigatória para os candidatos eleitos.

O “debate real” levanta o mesmo tipo de reivindicações, com algumas variantes, como a anulação de uma eleição em que os votos brancos e nulos seriam maioria, a supressão da imunidade parlamentar, mas também algumas reformas para realocar os cidadãos no centro do sistema político. Em geral, os Coletes Amarelos rejeitam as formas eleitorais que já não permitem uma verdadeira escolha. Assim, eles definem a abstenção como a recusa em se submeter a decisões tendenciosas e não como falta de interesse na política. Eles não se opõem aos eleitos, mas rejeitam a meritocracia. O sistema político deve ser cuidadosamente revisado para ser eficiente a fim de garantir o interesse público e, portanto, os Coletes Amarelos não podem ser um movimento político porque estariam sujeitos a compromissos em relação ao sistema.

Propostas diversas

No plano da economia e do emprego, o que está no centro é a luta contra as desigualdades e a distribuição justa da riqueza. Destaca a redução de dividendos aos acionistas, o estabelecimento de um imposto sobre as transações financeiras e a abolição dos paraquedas dourados. Para a salvaguarda do emprego na França, alguns levantam a luta contra a deslocalização, a modificação de acordos comerciais e tratados como o CETA2 para proteger as pequenas empresas, apoiar a economia local e combater a especulação financeira. Outros elevam o desenvolvimento do emprego solidária, e o apoio a iniciativas econômicas. No que diz respeito à educação, a formação profissional é motivo de grande preocupação, uma vez que esta é o núcleo das reformas em curso, bem como a reavaliação do comércio e salários dos professores. É necessário reforçar os meios na área da educação prioritária para alcançar a verdadeira igualdade de oportunidades através da luta contra o abandono escolar e orientação profissional.

No que diz respeito ao poder de compra, expressa-se uma grande mobilização em torno da questão das pensões com a supressão dos aumentos do CSG3 e a indexação das pensões à inflação, o aumento do rendimento do SMIC e os baixos salários. O custo da saúde, habitação e energia também é afetado como parte das despesas limitadas que precisam ser revistas. As políticas sociais vinculadas ao combate à pobreza e à precariedade estão interligadas com as reivindicações de melhoria do sistema de saúde. O “debate real” rejeitou qualquer ideia de aumentar as horas de trabalho para 39 horas por semana e prolongar a idade para a aposentadoria. O fortalecimento da escola pública, igualitária e inclusiva, também tem sido proposto, junto à necessidade de uma reforma do sistema educacional para atender às necessidades dos alunos.

Conclusões do “grande debate nacional”

O Primeiro Ministro, Edouard Philippe, apresentou os resultados deste “grande debate nacional” em 8 de abril no Grand Palace, com uma ampla transmissão televisiva. Emmanuel Macron, por sua vez, apresentou suas conclusões em 25 de abril na forma de uma coletiva de imprensa. As medidas anunciadas reforçam o que todos suspeitavam: a continuação das reformas liberais já iniciadas e a continuação de uma estratégia política que acentua as divisões, a desigualdade e dá as costas a diferentes setores da sociedade.

O anúncio de que as pequenas aposentadorias (até 2000 euros por mês) serão compensadas pela inflação não resolverá a questão do poder de compra, já que de qualquer maneira a taxa proposta de 0,3% está bem abaixo do nível das perdas que já foram feitas nas pensões com o aumento do CSG. A medida para reduzir o imposto de renda não resolverá esta questão, e especialmente não a justiça social e fiscal reivindicada pelo movimento dos Coletes Amarelos. Macron não toca nas classes mais ricas, não introduz nenhuma modificação no atual sistema de distribuição no qual as empresas podem continuar a otimizar suas tributações, recebendo subsídio estatal de um lado e desviando as leis do outro, para sempre obter mais benefícios, e pagar menos impostos. Macron também anunciou que é a favor de aumentar o tempo de trabalho sem remuneração para permitir maior competitividade de nossas empresas! “Trabalhe mais para ganhar menos”, uma medida adicional que demonstra seu desprezo pelos trabalhadores em um contexto no qual o movimento social se expressa nas ruas para uma distribuição mais justa da riqueza, do tempo de trabalho e da manutenção da renda. serviços públicos e de proximidade. Este governo afirma, assim, desenvolver algumas pequenas medidas de redistribuição do poder de compra para certos setores, suas intenções de não mudar de rumo, continuar as reformas iniciadas e avançar usando mais e mais força contra o movimento social. A repressão policial é de grande violência contra o movimento dos Coletes Amarelos e todas as formas de desafio, com interpelações, detenções imediatas; agressões graves que causaram numerosos danos físicos.

De acordo com um artigo da Mediapart4de março de 2019, alguns policiais testemunharam sobre esta situação em que “os slogans são os seguintes: sistematicamente colocar os Coletes Amarelos na detenção policial. São muitas vezes detenções preventivas. Ou seja, em termos de que não se respeita nada. No e-mail que recebemos, está escrito em preto e branco que o Estado-Maior Geral ordena que a detenção policial seja sistemática. Isso é completamente ilegal. “

A liberdade de manifestação é questionada, com uma crescente criminalização dos participantes nas mobilizações. Isso foi visto em Paris em 1 de maio com o ataque da polícia na manifestação sindical da CGT. Demonstra um sistema capitalista sem fôlego que, diante do questionamento a seu funcionamento e suas opções políticas, deve desenvolver estratégias cada vez mais violentas com novas armas de guerra contra a população.

Esta situação é acentuada e é possível devido à dispersão das forças políticas da esquerda, devido à falta de uma convergência necessária nas lutas entre os diferentes movimentos sociais, os partidos de esquerda e os sindicatos, em torno de um programa de exigências simples e compartilhadas para obter uma maior justiça social e fiscal, pela melhoria de condições de vida dignas para todos ou pela defesa e preservação dos serviços públicos.

Les Posadistes (França e Europa)

24 de maio de 2019

[1] CNRS = Centro nacional de pesquisa cientifica
2 CETA = Acordo econômico entre a União Europeia e Canadá que está em vigor pelos parlamentos de cada país agora (foi aceitado pela França há pouco, mas com uma oposição bem grande dentro do campo do próprio Macron)
3 CSG = é uma contribuição financeira suplementar tocada nas entradas (sejam salários ou pensões) e foi um aumento muito duro para os aposentados sobretudo para os pobres. Macron disse que iria melhorar a situação e eliminar este imposto aos
4vMediapart = Ele é um jornal on-line independente com uma certa esquerda intelectual (com posições às vezes muito discutíveis sobre a União Soviética, a Venezuela, Bachar al Asad na Síria e esses tipos de países) que dá muita informação atual e também artigos interessantes.

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